segunda-feira, 13 de abril de 2009

Dos pensamentos de viagem

Entretinha-se a alinhar todos os varões das carruagens do metro pelo primeiro. Três carruagens seguidas, sem portas pelo meio, permitiam este jogo de virar a cabeça consoante as curvas do comboio. Posicionava-se correctamente, fechava um dos olhos e estava ganha a partida: um só varão, desde a primeira porta até lá ao fundo.

Entretinha-se, como já se tinha dito, até se ter intrometido uma moça pelos corredores. Na verdade, ela vinha desde a outra ponta, onde não se via o último varão. No entanto, só foi notada a dois varões de distância. Ficou de pé, encostou-se sobre um banco e pôs-se a ler. Enfiada na sua leitura, não pôde ver o olhar reprovador a dois varões de distância: a capa do livro tocava a contracapa! Assim dás cabo do livro, rapariga, imagino que seja para estudar, mas ainda assim isso não se faz, pensava enquanto observava o lápis a sublinhar.

E então pôs-se a examinar toda aquela figura. O cabelo era liso mas não tinha sido penteado após o banho, e cobria grande parte do rosto; os ombros eram curtos para o casaco, cujas mangas iam bem para lá do pulso, escondendo desse jeito também as mãos, essas criminosas que destruíam a lombada, colada ou cosida, Tanto faz, com um tratamento assim não há milagreiros; uma pequena sacola à tiracolo; calças de bombazina, verde-acastanhado, pelo menos foi o que lhe pareceu, porque rapidamente se pôs a examinar o item seguinte; uns sapatos de couro, não sabia se havia de lhes chamar sandálias, chinelos, chanatas, embora chinelos lhe parecesse melhor.

Deteve-se um pouco a contemplar-lhe o calçado. A parte da frente, que cobria os dedos e parte substancial do peito do pé, estava amolgada e escurecida e a sola suficientemente gasta para se perceber isso mesmo, que estava gasta. Enfim, eram uns sapatos — ou sandálias, chinelos, chanatas, embora chinelos lhe parecesse melhor — velhos e usados. Devem ter pisado muitos metros de corredor das carruagens do metro, acompanhado correrias para apanhar aquele que acaba de chegar, E daí talvez não, ela não tem ar de quem corre para apanhar os transportes, ouvido o bip da passagem aberta e o ti-ti-ti do bilhete inválido, e provavelmente até foram pisados umas quantas vezes nos autocarros, que o metro não chega a todo o lado.

Quando finalmente se preparava para ter uma opinião sobre os sapatos — ou sandálias, chinelos, chanatas, embora chinelos lhe parecesse melhor — velhos e usados, que da moça estava já formada só pela maneira como tratava o livro, o metro parou, as portas abriram-se e ela foi por ali fora, sem haver oportunidade para decidir se aquele calçado era sinal de personalidade ou de desleixo.

4 comentários:

Taira Kiyomori disse...

this sandalss are made for walking and that's just what they'll do, and one of these days these sandals are gonna walk all over you!

Ana disse...

Se tivesse o teu hábito de ver para onde é que cada pessoa olha quando anda de metro, gostaria de me ter cruzado contigo nessa viagem, reparar em ti e pensar que deverias ser tolo por balançares a tua cabeça perante as curvas da carruagem.
Não censuro a moça, que livros meus também não são tratados com carinho.

Diogo Vasconcelos disse...

http://www.youtube.com/watch?v=tnhYW7UihgI&feature=PlayList&p=B403A41A4D48B610&playnext=1&playnext_from=PL&index=16

so se aproveitam os primeiros 50 seg.
(obrigado, obrigado)

Ana Martins disse...

Adoro-te. Por muitos motivos, mas repares nesses pormenores que a maioria das pessoas ignora é um dos mais fortes.